Crônicas Para Ler Depois do Fim do Mundo
por
Mario Persona
Smashwords Edition
ISBN:
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Publicado por:
Mario Persona no Smashwords
Copyright © 2013 by Mario Persona
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permaneça na sua forma original.
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Moving ON (inglês)
Capa: Stephan Dirck Klaes
Imagens: Darren Hester, Gabriele Bianco e “natep182” em SXC.hu - stock.xchng
Versão impressa sob demanda em www.bookess.com
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Sumário
Prefácio
O que fazer quando o mundo não acaba
Ela, Robô
Lá fora é melhor
Se oriente rapaz
Sou mineiro
Humor líquido
Máquina sinistra
Minha bicicleta high-tech
Alter ego virtual
Upgrade
Para preservar a imagem
Maravilha tecnológica
O peru de dona Gertrudes
Pratos em extinção
Um avatar no meu quintal
A hora do Abreu
As 110 lâmpadas
A expansão do ser humano
Ai, que fome!
Santa Maria!
Minha vida esportiva
O Maverick de Hildebrando
O velho sobrado
A Bruxa da portinhola
Máquinas, pescadores e top models
Tudo azul
Dinheiro eletrônico
A nuvem
Hábitos tecnológicos
O inventor da economia
Cérebro líquido
Inventores
Acabou o papel!
Anos Dobrados
Prêmio Mr. Bean de comunicação
Eu sei que vou a Marte
Os “Caçoadores de Mitos”
Diversidade à flor da pele
Flexibilidade feminina
Invenção feminina
Banana, menina, tem vitamina
Yes, nós temos cana
Depois do fim do mundo
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Prefácio
Espero que o título “Crônicas para ler depois do fim do mundo” não tenha levado você a pensar que
eu esteja falando literalmente do fim do mundo. Não é desse fim cabal e literal do planeta terra que
estou falando, pois aí seria impossível ler, seja em papel, que não resiste ao fogo, seja em e-book por
não ter sobrado uma tomada sequer para recarregar.
Meu assunto aqui é o fim do mundo que acontece cada vez que tudo parece começar de novo e
somos obrigados a reaprender. Depois de mais de meio século de idade já vi o mundo acabar
algumas vezes. E para a moçada que vive esperando uma nova era, vocês nem imaginam quantas
eras novas eu precisei experimentar. E quando penso que uma é nova, já era. (Ui!)
Portanto é deste mundo que acaba a cada esquina da vida que vou tratar aqui. Ao ler você pode até
me achar saudosista, de tanto que falo de diferentes passados, mas não sou assim. Ao contrário, estou
sempre procurando novas sarnas para me coçar e o nome disto é vontade de criar. A cada fim do
mundo como o conhecemos ficamos diante de novos desafios e o jeito é reciclar antes de sermos
reciclados.
Neste livro de coisas velhas você vai ler de muita coisa nova, como a nova consciência de
preservação ambiental ao conhecer “O peru de Dona Gertrudes” e os “Pratos em Extinção”. Em
“Acabou o papel” levo você a um passeio pelo passado do papel, o qual bem ou mal passamos todos
os dias. Você viajará comigo no “Maverick de Hildebrando” e verá a paisagem das mudanças
acontecendo a duzentos por hora. No caso deste Maverick, duzentos passos. O impacto das novas
tecnologias eu apresento em “Máquina sinistra” e a criatividade que precisamos ter para enfrentar
tantas mudanças está em meu “Cérebro líquido”, o que só tenho porque “Sou mineiro”.
“Santa Maria!” – você irá exclamar, quando souber que o mundo já acabou muitas vezes nos séculos
passados, e talvez até queira tentar a sorte fora do país quando souber que “Melhor é lá fora”. Mas
aceite meu conselho: “Se oriente rapaz” ou vai ficar falando sozinho. Caso você esteja envolvido na
“Expansão do ser humano”, exercite-se comigo em “Minha vida esportiva” para perder uns
quilinhos. Mas isto irá exigir que você passe “Fome, muita fome!”.
Mas isto é apenas um aperitivo, pois tem muito mais assuntos aqui. Boa leitura e, e gostar, espalhe
logo antes que este mundo se acabe.
Mario Persona
Janeiro de 2013
* * * * *
O que fazer quando o mundo não acaba
Muita gente esperava pelo fim do mundo que não veio na data marcada. Sim, digo muita gente, porque
existe um desejo secreto em cada um de nós de não precisarmos voltar a trabalhar na segunda-feira. Ou
você não reparou que o fim do mundo da profecia Maia caiu numa sexta? E agora, o que fazer já que o
mundo não acabou?
Bem, segunda-feira você volta a pegar no batente, seu carnê do crediário continua uma brochura e
seu salário continua terminando no dia 21, bem antes do fim do mês e do mundo. Mas pense nas
coisas boas que ainda podem acontecer! Quais? Bem, não sei fazer previsões, mas sei que você ainda
pode recomeçar com uma nova configuração.
Para tanto sugiro a leitura de “Mind Set! – Eleven Ways to Change the Way You See – and Create –
the Future”, de John Naisbitt (autor de “Megatrends”), lançado no Brasil há alguns anos com o
pasteurizado título de “O Líder do Futuro – 11 conceitos essenciais para ter clareza num mundo
confuso e se antecipar às novas tendências”.
A ideia do título original em inglês é de uma nova configuração mental para você enxergar o futuro
com maior clareza e preparar-se para ele. O autor propõe uma espécie de “reset” e a instalação de 11
“mindsets”, que não vou traduzir porque se você ainda não saiu da lição do “the book is on the table” é
melhor incluir um “mindset zero” do tipo “Aprender inglês”:
1. Most Things Remain Constant
2. The Future Is Embedded In The Present
3. Focus On The Score Of The Game
4. Understand How Powerful It Is Not To Have To Be Right
5. See The Future As A Picture Puzzle
6. Don't Get So Far Ahead Of The Parade That They Don't Know You Are In It
7. Resistance To Change Falls For Benefits
8. Things That We Expect To Happen Always Happen More Slowly
9. You Don't Get Results By Solving Problems, But By Exploiting Opportunities
10. Don't Add Unless You Subtract
11. Consider The Ecology Of Technology
Agora vamos à minha paráfrase nem um pouco canônica, enriquecida com palpites de minha autoria.
1 - Na vida tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorista. Apesar de muita coisa mudar, há
coisas que não mudam. As pessoas continuarão a comprar, vender, trabalhar, criar filhos etc. Invente
algo para as pessoas fazerem o que já costumam fazer. Só que diferente.
2 - O futuro é uma azeitona na empada presente. Conhecer história e acompanhar o presente é
essencial para se entender o futuro. O segredo é saber filtrar opiniões – inclusive as minhas – e parar
de engolir tudo o que a sociedade e a mídia derramam em sua mente. Apesar do ditado popular, a
voz do povo nunca foi a voz de Deus.
3 - Fique de olho no placar. Empresas dizem que vão fazer isso e faturar aquilo. Não acredite. O
garoto que vende balas no semáforo lucra mais que aquele CEO que a capa da revista diz ser a última
bolacha do pacote. No fim do dia o garoto volta pra casa com 100% de lucro. O CEO volta devendo
mais para os bancos.
4 - Fazer xixi fora do penico nem sempre é ruim. Inovadores são os que desafiam o “status quo” e
ousam fazer aquilo que ninguém acredita dar certo. Não se preocupe em estar 100% nos trilhos. Nem
o professor que ensinava matemática a Einstein acreditava nele. É por isso que nem eu acredito em
mim. Quem sabe assim dá certo!
5 - O futuro é um quebra-cabeça. Esqueça o pensamento sequencial, lógico, racional. Pense
aleatoriamente. Dois mais dois pode dar quatro, mas não precisa deixar o segundo dois assim
montado no primeiro. Deixe um pouquinho mais longe e o resultado é melhor: vinte e dois.
6 - Nem o porta-bandeira fica longe do bloco. Grandes ideias fracassaram por estarem muito à
frente de seu tempo. Mantenha-se numa posição em que possa ser visto pelo mercado. Não siga este
conselho se estiver devendo na praça.
7 - Se a macarronada for boa a gente até gosta da sogra. A resistência à mudança desaparece
quando os benefícios são visíveis. Se as pessoas que você lidera não estiverem aceitando benefícios
que são claros para você, o problema pode estar na sua comunicação.
8 - Devagar com o andor que o santo é de barro. Aquilo que você espera acontecer sempre
demora mais do que você espera. Sua casa ainda não é no estilo Jetsons e seu carro ainda não voa. O
videofone foi inventado há quarenta anos, mas foi só com a Internet que ele começou a fazer sentido.
9 - Quem resolve problemas ganha salário; quem explora oportunidades ganha comissão.
Resolver problemas é trabalhar no ontem, mas buscar oportunidades é viver o amanhã. Uau! Esta eu
vou emoldurar!
10 - Um é pouco, dois é bom, três é demais. Você só pode acrescentar um novo craque no time se
tirar alguém ruim. Quando eu era menino, o professor de educação física me colocava no gol para
completar onze. Depois me tirava quando chegava qualquer um. Na empresa não vai ser diferente.
11 - Não se esqueça da ecologia da tecnologia. Nem tente inventar um par de sapatos modelo único
para todas as mulheres. A tecnologia possibilita muitas coisas, mas elas não farão sentido se não
levarem em conta os anseios da natureza humana.
Pronto, espero que estes onze “mindsets” ajudem você a se preparar para o futuro. Se não ajudarem,
um eu tenho certeza de que irá ajudar. O “mindset zero”.
* * * * *
Ela, Robô
Lá em casa tem um robô. Mas não é um robô chato, como o de Perdidos no Espaço, ou ameaçador
como o “Eu, Robô” de Isaac Asimov que no filme ficou amigo do Will Smith. Nem é divertido,
como a dupla C3PO e R2D2 de Guerra nas Estrelas. Meu robô é comum. É um robô fêmea.
Sim, fêmea, mas chamá-la de “roboa” soaria estranho, por isso eu a chamo de “Ela, Robô”. Não
tinha o “He-Man”, a “She-Ra” e a “Ella Fitzgerald”? Então “Ela Robô” também pode. Gorda,
grande e barulhenta, “Ela” não faz o gênero futurista de Hollywood. Inteligência? Só se for artificial.
Capacidade de memória? Esqueça. “Ela” perde feio para qualquer calculadora. “Ela” só serve para
uma coisa: fazer o trabalho sujo.
O curioso é que quem me convenceu a ter um robô foi um hippie. Verdade, um cara muito zen,
vestido de um imaculado branco-algodão e com os cabelos bem cuidados, presos com uma fita
atravessada na testa. Hippie de butique.
Sua vidinha de fiscal de praia só era possível porque, além de morar numa praia, sua mulher
trabalhava na prefeitura da cidadezinha litorânea. Enquanto isso ele ficava em casa cuidando das
crianças. A mulher também era hippie, mas não estava hippie por trabalhar numa repartição pública.
Você conhece algum hippie funcionário público?
O sonho dela era largar o emprego e ser hippie de tempo integral no sítio do avô em Visconde de
Mauá. Criar os filhos longe da influência nefasta do progresso e da TV do vizinho, que enchia a
cabeça dos pequenos com as músicas do Balão Mágico. Sim, estamos falando aqui dos anos 1980.
O casal não tinha TV, mas tinha um monte de filhos. Sem TV e com um controle apenas remoto, a
taxa de natalidade do casal estava acima da média do IBOPE. De nossa conversa deduzi que o hippie
só sabia fazer filhos e criticar o progresso. Enquanto conversávamos, minha filhinha, ainda bebê,
dormia aninhada em meu colo.
Fiquei curioso quando o hippie contou que, se quisessem, já poderiam se mudar para o sítio e viver
bem só com a poupança da mulher. Era ele quem vinha adiando a mudança, pelo menos até as
crianças deixarem as fraldas. Só depois pretendiam se mudar para o mato e viver comendo inhame e
tomando banho gelado. Sim, pois no sítio não tinha chuveiro elétrico. Lá a eletricidade só chegava
quando caía raio.
Mas seu problema não estava em abrir mão do chuveiro elétrico. Ou refrigerador, liquidificador,
batedeira e ferro de passar. Ele podia viver sem. Até o secador, amigão dos cabelos amarrados com
fita, podia ser trocado pelo vento da Serra da Mantiqueira. Só um eletrodoméstico era essencial, só
um! Eu estava louco para saber, e você deve estar também.
– Cara – o hippie começou a explicar naquela velocidade que hippie explica –, a mulher trabalha
fora e eu fico o dia todo em casa com as crianças, sacou? Faço o rango, dou banho, lavo a roupa
Cara, você já lavou fraldas?
Fiz que sim com a cabeça e sorri um sorriso paterno para o bebê que dormia em meu colo.
– Cara, já viu os adesivos que esses carinhas são capazes de produzir?
Fiz que sim outra vez, mas desta vez não sorri para o bebê em meu colo. Naquele tempo fralda
descartável ainda era ficção científica orçamentária, e no sorteio das tarefas domésticas o azar era
meu. Conhecia adesivos de diferentes cores, consistências e poder de aderência.
– Pois é cara – o hippie falava de cara em cara –, sou capaz de abrir mão de tudo; luz elétrica,
refrigerador até o Jimi Hendrix eu aceito tocar na vitrola de pilha. Mas não mudo para o sítio com
criança pequena sem meu robô.
Fiz cara de quem não entendeu, porque não tinha entendido mesmo.
– A máquina de lavar roupas, cara! É meu robozinho, não vivo sem ela!
Naquele momento o bebê em meu colo gemeu e pareceu ter aumentado de peso e volume. Foi
quando decidi ter um robô.
* * * * *
Lá fora é melhor
Está mais que provado: brasileiro é melhor lá fora. Há anos venho observando isso aqui e lá. Deve
ter algo a ver com aquela história de santo de casa não fazer milagre. Nem o santo quando está em
casa acredita que pode fazer, então precisa sair para acabar fazendo. E faz.
Às vezes é preciso sair do país para se valorizar e ser valorizado. Hoje milhares de brasileiros lá fora
mandam dólares cá para dentro. Será que é porque encontraram melhores oportunidades no além-
mar? Nem sempre. Alguns se sujeitaram a fazer lá o que teriam vergonha de fazer aqui. Como o
engenheiro desempregado aqui que se sujeita a lavar privadas lá, até virar empresário de sucesso lá e
investir aqui.
Se o profissional parece acreditar mais em si quando sai do ninho, o mesmo acontece com quem o vê
de fora. É o caso do técnico que aqui não é contratado nem para treinar time de futebol de botão de
várzea. É só sair para treinar um timeco qualquer no exterior e sai na primeira página. Aqui teria que
esperar a vida toda para sair no obituário de um canto de página.
Palestrante também é assim. Sou convidado para falar em todo o país, mas posso contar em metade
dos dedos da mão esquerda o número de vezes que falei em minha própria cidade. É compreensível.
Espera-se do palestrante que traga novidades. Como alguém pode trazer novidades se sempre morou
logo ali na esquina?
O mesmo acontece com artistas, cientistas, produtos e empresas. Só damos valor ao que o Brasil tem
bem debaixo do nosso nariz quando levamos o nariz para passear no exterior. Ao escolher o melhor
jogo de toalhas numa loja nos EUA, sem perceber acabei comprando toalhas fabricadas em Santa
Catarina. E já vi gente se gabando do sapato italiano comprado em Roma, sem saber que foi feito em
Franca, no interior de São Paulo.
Somos atraídos pelo que vem de fora, pelo incomum, pelo excêntrico. Quando jovem eu via garotos
de fora, feios de dar dó, que faziam o maior sucesso nos bailes de minha cidade. Só por serem de
fora as meninas os achavam mais interessantes do que os nativos. E veja que naquele tempo no
Brasil ainda não havia festas de Halloween.
Mas nenhuma experiência de valorização se compara ao encontro de brasileiros no exterior. Na fila
de embarque em Londres, o americano que viajava comigo achou muita coincidência eu encontrar
uma amiga bem ali, com quem conversei animadamente até entrarmos no avião. A verdade é que eu
sequer a conhecia, só conversamos porque um viu a capa do passaporte do outro. Brasileiros são
assim mesmo quando se encontram lá fora, amigos desde o descobrimento.
Um casal da melhor idade, sentado dois bancos atrás de mim, em um voo de Lisboa a Barcelona,
ficou eufórico depois de escutar eu falar “Brasil” sem “z” para o passageiro ao meu lado. Ouvi os
gritos que vinham lá de trás:
– Você é brasileiro? De onde? Para onde vai?
Admirei-me do entusiasmo do casal, conversando animados por sobre as cabeças dos outros
passageiros enquanto aguardávamos pelo desembarque no corredor do avião. No saguão do
aeroporto conversamos mais um montão, trocamos endereços e nos despedimos. Deu para ver os
olhos marejados daqueles queridos brasileiros depois do abraço apertado de despedida.
Meses depois passei pela cidade onde moravam e decidi procurar pelo endereço. Toquei a campainha
e o homem apareceu, surpreso, acenando da porta entreaberta e dizendo que era um prazer me ver de
novo. Depois, pediu licença, se despediu e fechou a porta. Percebi que ele também achava que
brasileiro era melhor lá fora.
* * * * *
Se oriente rapaz
Bem que o Gil previu. Em 1972 ele já cantava o “Oriente”. Tudo bem que então ele só pensou no
Japão e nem imaginou que o negócio da China seria a própria. Afinal, ela só acordou depois de o sol
nascer na terra do sol nascente. Agora somos nós que acordamos.
No ano em que Gil orientava para o Oriente, fui viver no mais ocidental Ocidente, numa típica
família americana – ele “made in USA”, ela na América Central. Apesar de não ser a China, o
contato alienígena me ensinou que é importante aprender a língua.
Agora oriento os mais jovens para que aprendam chinês – ou mandarim, se achar mais fácil. Se eu
sei? Nadinha. De China sou zero à esquerda, apesar de meu primeiro radinho de infância ter sido um
Mitsubishi. A Mitsubishi é japonesa? Eu avisei, sou zero à esquerda.
Mas se quiser negociar e vender na China aprenda a língua. Como assim? Vender o quê? Ora,
qualquer coisa que eles ainda não vendam aqui! Ok, esqueça este argumento. Vou tentar outro.
Um país com mais de 20% da população mundial deve querer comprar alguma coisa. Mais de um
bilhão de pessoas! Um mercado com gente que não acaba mais. Pílulas anticoncepcionais? Isso eles
já têm. Quando as estatísticas apontavam que a cada segundo uma chinesa dava à luz uma criança,
alguém sugeriu que encontrassem essa mulher e a fizessem parar. Não encontraram. Então
impuseram o limite de uma gestação por casal.
Olha aí uma oportunidade de negócio: vender sofás de três lugares para essas famílias. Mas produza
alguns de quatro, porque as autoridades ainda não conseguiram resolver a questão dos gêmeos.
Outra ideia? Vá para a China vender tratamento para LER, a Lesão por Esforço Repetitivo. Se existe
mercado para isso? Oras, se aqui o pessoal já sofre com um alfabeto de 23 letras imagine o que é
digitar num teclado com mais de seis mil caracteres!
Entenda, porém, que começar um negócio lá exige paciência. O povo chinês é assim. Outro dia ouvi
um locutor noticiar: “O embaixador chinês demonstrou impaciência com a demora da resolução tal
e tal”. Esse locutor está por fora. Já viu chinês impaciente?
Por ser brasileiro, você pode até perder a paciência de vez em quando lá na China. Só não solte os
cachorros e nem diga cobras e lagartos em algum restaurante chinês. O garçom pode perguntar se vai
querer frito ou cozido. Minha orientação? Aprenda a língua para proteger seu paladar.
Sei disso porque me dei mal nos EUA vivendo numa família norte-americana como estudante de
intercâmbio que não fez a lição de inglês em casa. Adolescente e obediente, durante um mês engoli
de breakfast aquelas panquecas doces e meladas. Um mês foi o tempo que levei para aprender e
dizer “I hate pancakes!”.
– Como pode detestar se comeu todo esse tempo e nunca disse nada? – perguntou a mother de lá, em
inglês curto e grosso.
A conversa morreu ali por absoluta falta de vocabulário. Comi panquecas todos os dias por mais
cinco meses até voltar ao Brasil. Desde então oriento quem quiser se aventurar pelo Oriente, de avião
ou, como sugere o Gil, “num cargueiro do Lloyd lavando o porão”: Aprenda a língua!
* * * * *
Sou mineiro
Sou mineiro. Não do tipo nascido nas Gerais, matuto e matreiro. Também não sou do tipo que invade
as entranhas da terra ou peneira rios em busca de estranhos tesouros. Mas tenho um pouco de cada:
do mineiro que matuta e do mineiro de bateia.
Desde criança sou assim, explorador de veios do cérebro e minas do pensamento, sempre errante nas
galerias das fantasias. Até a mãe e a professora conheciam meu olhar vidrado. Nem adiantava
chamar, que suas vozes só iriam ecoar sob a crosta craniana. Eu vivia em permanente viagem ao
centro da terra dos pensamentos.
Era para lá que ia, é para lá que vou quando quero encontrar a pepita dourada de uma ideia brilhante.
Ao contrário do mineiro de verdade, vou com a lanterna do capacete virada para a testa e vou
quietinho. Como faz o mineirinho.
Não sei se é personalidade ou consequência de minha imensa falta de memória, uma vaga do
tamanho de um elefante. Sou esquecido demais, por isso nunca me dei bem decorando. Tem gente
que bebe para esquecer. Eu decoro.
Esqueci de me preocupar quando descobri que minha falta de memória era o que lapidava minha
criatividade. Se não consigo lembrar, o jeito é reinventar. Mitomaníaco? Acho que não. O
mitomaníaco inventa e acha que é real. Eu, ao contrário, tenho certeza.
Li um artigo que explicava que não gravamos as coisas na memória como um texto grava no
computador, o qual você puxa e ele vem do jeitinho que você guardou. Se fosse assim conosco, já
pensou que fossa seria? Lembrar-se de alguém que partiu sentindo a mesma dor que sentiu?
O que a gente faz mesmo é recriar. Um pouquinho do que aconteceu, uma pincelada do que veio
depois, uma pitada de criatividade aqui, uma opinião alheia colada ali Pronto! O quadro que você
pinta agora tem mais tintas e é mais belo e real que a própria realidade de outrora.
É este o segredo do sorriso de Mona Lisa. Freud explicava que era por causa de uma atração erótica de
Da Vinci pela mãe, mas nem tudo Freud explica. Prefiro a explicação do filme “O Falcão Está à
Solta”, com Bruce Willis. Se valer a cena do ateliê de Leonardo, Mona Lisa não era assim. No filme, a
Mona Lisa do passado sorri um sorriso cariado. No quadro ela esconde sua triste realidade sob seu
sorriso enigmático pintado.
Toda criatividade é uma viagem ao reino do faz de conta, trazendo de lá coisas que poderão ou não
se tornar reais. Quem cria curte mais a viagem do que a bagagem, daí inconsequência e arte andarem
sempre de mãos dadas. Para o criativo, o valor não é medido em cifrões tangíveis, mas em sensações
nem sempre mensuráveis.
Dentre os efeitos colaterais da criatividade está a alienação, considerada boa por alguns, mas por
outros não. Há pessoas que têm pavio curto. O que tenho de curto é o fio da tomada da realidade. É
só entrar na mina dos meus pensamentos que o fio estica e se desliga da tomada da superfície. Isso é
bom? Isso é ótimo. Mas nem sempre.
É perigoso viajar desligado. Tem gente que dorme dirigindo, eu dirigindo viajo. Bastam alguns
quilômetros de asfalto para meu carro começar a ranger sob toneladas de ideias extraídas da rocha
cinzenta encravada nas profundas das minas do pensamento. Viajo pensando e penso viajando.
Às vezes consigo anotar ideias sem sentido em um papel qualquer, ou tento ditar para um gravador
digital o resultado mental que não quero esquecer. Mas, quando a viagem é interessante demais e o
elevador dos pensamentos desce a profundidades em que homem algum jamais chegou, perco o
interesse pelo real e acabo entretido pelo imaginário.
Foi num estado assim, entorpecido pela narcose que bamboleia mineiros e mergulhadores, que parei
num pedágio na estrada. Foi tudo muito rápido e nem sei se o cobrador percebeu quando abri o vidro
e apontei o controle remoto do portão de minha garagem em direção ao seu nariz, mas a cancela não
abriu. Voltei depressa à superfície disfarçando que procurava pela carteira.
* * * * *
Humor líquido
Todas as noites repito um mesmo ritual de ervas e sangue da terra. Nada macabro ou vampiresco.
Meu ritual resume-se a um prato de salada e um cálice de vinho, que Plínio chamava de “sangue da
terra” e Eurípides dizia servir “para acalmar as fadigas”. É minha recarga de bateria no fim do dia.
Mas não culpe o álcool se achar que escrevo por mal traçadas linhas. Nunca passa de um cálice, e
sempre vinho, jamais bebida destilada. O vinho é vivo, envelhece; é como um gênio da garrafa, que
atende os desejos do meu paladar quando liberto.
Galileu Galilei dizia que o vinho é feito de “humor líquido e luz”. Não há nada melhor para
acompanhar uma salada fresca, leve e contente, e tem a vantagem de conter antioxidantes. Não me
pergunte o que é e porque de repente todo mundo ficou contra os oxidantes, mas acho que o vinho
serve para desenferrujar. Li que combatem os radicais livres. Eu também odeio radicalismos. Morte
aos radicais!
Antioxidante virou moda. Uma hora é o vinho que é bom, outra hora é o café, dependendo do jabá
pago pelos fabricantes aos jornais, ou do lobby nos laboratórios de pesquisa. Ontem na TV disseram
que adoçantes artificiais engordam. Quase pude ver o doce sorriso dos usineiros.
Mas antioxidante deve funcionar mesmo, pois faz tempo que não vejo uma ruiva. E a lista não para
no vinho ou café. Têm o chá verde, que saiu do esquecimento do armário, e seu irmão mais novo, o
chá branco, que comprei e de branco não tem nada. Mesmo assim procuro tomar, principalmente
depois que descobri que meu plano de saúde agora é “Pré-Idoso”. Uma tremenda mancada da área de
comunicação da empresa, que devia dar nomes mais motivacionais aos planos. Para mim “Super
Sênior” ficaria de bom tamanho.
Faz tempo que os laboratórios farmacêuticos perceberam a importância do nome. Por exemplo,
descobri que o Ômega-3 que agora eu tomo eu já tomava na infância, quando minha mãe me fazia
engolir as intragáveis colheradas de “Óleo de Fígado de Bacalhau” ou “Emulsão Scott”. Eu tomava a
contragosto, só porque ela dizia que eu ficaria forte como o homem do rótulo, que carregava um
bacalhau nas costas. Mas se chamasse Ômega-3 eu teria tomado com prazer. Que garoto não tomaria
um troço com nome de espaçonave?
Voltando ao remédio que acompanha minha salada, não entendo de vinho, por isso posso beber o
tinto sem ficar vermelho. Mas os entendidos mandam o branco para acompanhar saladas. O que
fazer? O jeito é não convidar entendidos para o jantar. Alguns são chatos demais. Quer ver?
Uns amigos fizeram um jantar e convidaram um connoisseur, que é como os entendidos gostam de
ser chamados. Começou torcendo o nariz quando viu o rótulo da garrafa.
– Nacional – pensou em voz alta, pegando o cálice pela base e enfiando o nariz torcido nele. Todos
pensaram que ele queria beber de canudinho usando as narinas, mas era só para cheirar.
Depois deixou o vinho tonto de tanto rodopiar o cálice erguido contra a luz. Não fez cara boa.
Tomou um gole e parou. Não engoliu enquanto o vinho não cumprimentou cada uma de suas dez
mil papilas gustativas. Aquilo não era vinho, era político em velório em véspera de eleição.
Após um discreto bochecho, engoliu e começou a produzir uns estalidos estranhos, enquanto o
laboratório de análises clínicas de seu cérebro destrinchava o sabor. Aí veio a melhor parte.
Se você convidar um connoisseur para jantar, aproveite esta parte dos adjetivos. Esqueça a uva. Ele
vai dizer que o vinho tem um bouquet misto de pimentão e ameixa. Vai falar do corpo, insinuar que é
adamado, aveludado ou untuoso. Se disser que é chato, sápido ou foxado, não se preocupe. Não é
contagioso.
Enquanto a comida esfriava, o connoisseur viajava no vinho e os comensais babavam na maionese.
De repente saiu de seu transe e deu o veredito. Curto e grosso. Mais grosso do que curto, em se
tratando de um convidado que devia ser mais delicado.
– Deixa a desejar. Os importados são melhores. – sentenciou com olhar de desdém.
O anfitrião não se fez de rogado. Correu para a cozinha e logo apareceu com uma garrafa de vinho
francês, dos caros. Só o rótulo já iluminou os olhos do connoisseur.
Enquanto os outros decidiam meter o garfo na comida fria antes que ficasse gelada, o connoisseur
recomeçou seu ritual de degustação.
Nariz no cálice, rodopiada, bochecho, estalidos e adjetivos, tudo igual. Então veio um sorriso do
mais puro êxtase:
– Grand vin! Magnifique! – arriscou em francês, para combinar com o rótulo.
O anfitrião ficou tinto de tanto rir.
– Que magnífico o quê, cara? Peguei uma garrafa vazia e enchi de vinho de garrafão.
– Então deu sorte. É uma boa safra. – concluiu o connoisseur sem perder a fleuma.
* * * * *
Máquina sinistra
Nasci na era das máquinas. Quem lê vai achar que sou moderno, mas é de máquina de escrever que
estou falando. Pertenço a uma geração que só conseguia emprego decente se soubesse datilografar.,
de preferência usando os dez dedos e sem olhar. O sujeito podia até ser analfabeto, mas se tivesse
datilografia era contratado.
A máquina de escrever reinava absoluta nos escritórios e sua batucada só eventualmente era
descompassada pelo girar da manivela de alguma máquina de calcular. Sim, as máquinas de calcular
tinham manivela, como nos carros antigos. Acho que servia para dar partida em seu cérebro
mecânico.
Eu era adolescente quando aprendi datilografia em um colégio norte-americano. Era estudante de
intercâmbio e aprendi a datilografar só em inglês, por isso até hoje preciso olhar para as teclas na
hora dos acentos. Também faltei na aula dos números, daí minha maior familiaridade com as letras.
Já crescido, fiz vários trabalhos de tradução usando uma máquina de escrever portátil, o equivalente
dos atuais notebooks. Se era rápida? Muito. Não parava quieta na escrivaninha. Levíssima, a
maquininha deslizava de um lado para o outro enquanto meus dedos trotavam perseguindo suas
teclas.
Como não existia a tecla do arrependimento, que hoje chamamos de “Delete”, às vezes eu tinha de
datilografar o documento inteiro de novo só para entregá-lo sem rasuras. Também era comum eu
achar que o texto estava bom do jeito medíocre que saiu na primeira tentativa, só para evitar escrever
tudo de novo e tropeçar na última palavra. Muitos dos grandes romances daquela época teriam outro
desfecho se fossem escritos em um computador com processador de textos.
A geração mais nova pode achar que no tempo da máquina de escrever a vida era complicada. Não
era. Complicada mesmo ficou depois, quando apareceu aquele objeto estranho nas mesas de algumas
empresas: o computador pessoal. Quando dizem que os computadores causaram uma revolução, eu
concordo. Éramos nós contra eles.
Qualquer pessoa da minha idade sabe o que é sentir pavor diante da novidade. Minha geração só
descobriu que a convivência seria possível quando começou a tratar o computador como se fosse
mulher. Era só não tentar entender como funcionava que tudo dava certo, com a vantagem de se
poder clicar “Mute” no ícone do alto-falante e um botão para ligar e desligar a máquina quando
necessário.
A chegada do computador na empresa era sempre cercada de descrédito, piadas e risadas nervosas,
como as pessoas costumam fazer em velórios e momentos de profundo estresse e medo. Em algumas
empresas ocorriam manifestações, revoltas ou bolsões de resistência.
Sim, porque o que não faltava eram as teorias conspiratórias. Uma era que os jogos que vinham de
brinde serviam para distrair os usuários enquanto os computadores tomavam seus empregos. Seriam
a versão moderna dos espelhinhos e contas que os colonizadores davam aos índios para distraí-los e
tomar suas terras.
Como se não bastasse a dificuldade de ser tudo em inglês, os computadores despertavam também
suspeitas das mais sinistras. Alguns acreditavam existir um poder oculto por detrás do cursor, prova
inequívoca de um batimento cardíaco, e uma câmara secreta para onde eram levados presos os
documentos que desapareciam misteriosamente quando faltava luz.
Tudo isso preocupou um amigo quando comprou um dos primeiros computadores que
desembarcaram aqui. Era um Apple que custava quase o preço de um carro. Meu amigo examinou
com cuidado o que vinha na caixa e ligou apavorado:
– Não estou gostando nada disso tem um disquete aqui que não parece ser coisa boa tenho medo
de usar
– O que diz a etiqueta?
– Demo!
* * * * *
Minha bicicleta high-tech
Quando vi pela primeira vez aquele tudo-em-um do iPhone, fiquei com um pé atrás. Será que me
acostumo com esse negócio de cineminha e telefone no mesmo aparelho? Se existe uma coisa que
detesto é telefone tocando no meio do filme. Você já correu atender um telefone que tocou no filme
da TV? Eu também.
Outra coisa me preocupa. Quando todo mundo tiver um iPhone, vai ficar todo mundo igual, como
aconteceu com o iPod e seu fonezinho branco. Massificou. Com o iPhone ninguém mais será
diferente.
Além disso, o que fazer com aquele monte de apetrechos que hoje carrego? Sim, minha coleção só
aumenta! Tenho um celular básico, Palm, câmera fotográfica, filmadora, gravador de mp3, pen
drive Você precisa ver a inveja que causa espalhar tudo isso sobre a mesa numa reunião. Com um
iPhone eu não causaria o mesmo impacto.
Tudo bem que não estou mais na idade de querer impressionar, mas e a garotada? Como um garoto
vai se diferenciar se todos os garotos forem iguais? No meu tempo eu teria odiado se fizessem isso
com as bicicletas. Naquela época as magrelas vinham peladas e a diversão era enchê-las de
penduricalhos. A minha era uma Phillips, do tempo da 2ª Guerra, mas não era preta como a maioria
das bicicletas da época. Meu pai mandou pintá-la de vermelho para minha irmã. Ela se cansou de
pedalar e eu herdei a dita.
Bicicleta vermelha, de mulher e sem aquela barra horizontal masculina – dá pra imaginar? Era sair
de casa e atrair a gozação da garotada. Por isso passei a gastar a mesada em acessórios para deixar a
bicicleta tão diferente que os meninos se esquecessem de que era de mulher.
Comecei com a campainha que fazia "trrrim-trrrim". Depois foram os canudinhos de plástico
coloridos, cortados em pedacinhos e pacientemente colocados nos 72 raios das rodas. Faziam "shek-
shek". O garfo dianteiro ganhou um pedaço de radiografia que lambia os raios e fazia "Prrrréééé",
igual ao da motocicleta Java do vizinho. Pelo menos eu achava.
"Prrrréééé", "shek-shek", "trrrim-trrrim", "biii-biii!". Não falei do "biii-biii"? Pois é, foi minha
próxima aquisição: uma buzina verde movida a pilha que fazia inveja à campainha do outro lado do
guidão, junto ao retrovisor. Depois veio o farol com dínamo, todo cromado, que parecia a nave do
Flash Gordon. Minha bicicleta ficava cada vez mais high-tech.
Minha volúpia por acessórios não parou aí. Manoplas de borracha com fitinhas coloridas e uma
caixinha de ferramentas pendurada atrás do selim vieram em seguida. A cada novo acessório os
garotos cercavam minha bicicleta na escola para comentar e invejar. Meu conceito subia.
Quase me esqueci da capa do selim com o símbolo do Palmeiras. Não que eu fosse torcedor, apenas
comprei porque combinava com a buzina. A capa era a última palavra em cafonice, com apliques de
purpurina e pingentes de cordão de seda. Os palmeirenses pensavam que eu era fã e os corintianos
achavam o contrário. Que fã iria pedalar com o símbolo do clube naquele lugar?
Naquele tempo não havia duas bicicletas iguais, pois o mau gosto dos meninos era bem eclético. Na
época, comprar algo com tudo instalado, como o iPhone, seria como comprar um álbum com as
figurinhas já coladas. Cadê a graça? Cadê a surpresa? Como se gabar de ter a figurinha do Amarildo,
da Seleção de 62, que ninguém tinha?
Agora imagine tudo num aparelhinho só: música, fotos, filmes, celular, câmera, Web, e-mails,
mapas É claro que estou falando da garotada, que quer ser diferente. Para alguém como eu, que não
pedala e nem coleciona figurinhas, um iPhone pode até interessar.
Vou poder ver um filme, enquanto filmo outro, ouço bossa-nova, ligo para os amigos, navego na
Web, leio meus e-mails e dirijo procurando o endereço no mapa on-line. Não contei que estava
dirigindo? Melhor não
Mas ainda estou em dúvida se devo ou não comprar um iPhone. É que para mim não ficou claro uma
coisa: se o meu iPhone tocar no meio do filme que estou assistindo no próprio iPhone, quem deve
atender? Eu ou o ator?
* * * * *
Alter ego virtual
A família inteira correu para o computador, quando uma voz nada familiar invadiu o mezanino da
casa onde morávamos. Estávamos em 1997 e eu acabara de fazer minha primeira conexão de voz
usando um programinha paleolítico que veio num disquete de revista. Naquele tempo os programas
de Internet eram baixados das bancas.
A conexão estava por um fio e qualquer solavanco era capaz de derrubá-la. Quando caía, era preciso
ficar discando para o provedor de Internet até conseguir linha e ouvir o teré-té-té do modem, cuja
embalagem dizia ser “High Speed”.
– Hello? – arrisquei, sem saber com que língua o outro teclava.
– Hi, how are you? – respondeu a voz alienígena dando início a um papo furado que iria durar mais
de uma hora.
Dez anos depois interagir online com pessoas de outros lugares tinha virado lugar comum. Então
alguém inventou uma mescla de game "Wolfenstein 3D" com shopping, clube de campo e danceteria
e batizou aquilo de "Second Life". O serviço prometia a possibilidade de você ser uma pessoa
diferente em outro mundo, enquanto interagia com pessoas que não eram o que diziam ser neste
mundo. Em 2007 decidi experimentar a tal da segunda vida.
Digitei www.secondlife.com e tentei criar meu Avatar – era assim que chamavam o bonequinho mal
acabado que devia ser a segunda via de mim. Logo descobri que eu não poderia ser eu mesmo. Podia
ser “Mario”, mas não “Persona”, já que era obrigado a escolher o sobrenome de uma lista que não
tinha o meu. Tinha "Pessoa", então decidi ser “Mario Pessoa”. Num mundo virtual em inglês eu virei
português!
Mesmo assim fui barrado. Alguém tinha escolhido ser eu antes de mim. Voltei para as opções de
sobrenome e encontrei um muito estranho: “Falta”. Na falta da opção de usar meu próprio nome e
sobrenome, digitei “Achei” no campo do nome e escolhi “Falta” por sobrenome. Beleza, no "Second
Life" eu sou o “Achei Falta”. Nem preciso dizer que o nome estava disponível.
Clica aqui, clica ali, e no campo da data de nascimento, o exemplo dado era “1980”. Será que
nascidos em 1955 eram velhos demais para brincarem? Fiz de conta que não entendi e escolhi um
Avatar nada parecido comigo, por absoluta falta de modelos velhos e barrigudos. Eram todos jovens
e sarados.
Cliquei que tinha lido o contrato que não li, e baixei 30Mb de programa só para receber um aviso
de que minha placa de vídeo era incompatível! Para quem nasceu em 1955 e tem uma placa de vídeo
igual à minha, pelo jeito a opção é assistir desenho animado em parede de caverna. Depois dos sem-
terra e sem-teto, descobri que havia os sem-second-life. Eu era um deles.
Achei que não valia a pena investir numa segunda placa só para ter uma segunda vida, então comecei
a pesquisar sobre como seria viver naquele mundo do faz-de-conta. Seus mais de cinco milhões de
habitantes na época podiam comprar, vender, dançar e viver lá como nunca viviam aqui. Seria uma
opção para os frustrados? Os mais empolgados podiam até pagar aqui, em dinheiro real, por terrenos
virtuais comprados lá, onde não existe IPTU.
Considerando que consegui criar meu Avatar, mas não consegui entrar naquele mundo virtual, uma
coisa me preocupa: Onde andará meu segundo eu? E mais: Como posso ser eu se não posso estar
onde estou? Será que virei uma alma penada num limbo virtual? Enquanto escrevo vem a notícia de
que o "Second Life" demitiu 30% de sua equipe. Talvez fosse a chance de eu me encontrar comigo
aqui fora, mas descobri que só demitiram personagens reais, nenhum virtual.
Anos depois o “Achei Falta” deve estar sentindo muita falta de mim. Ou não. Para matar a fome de
interatividade virtual vou quebrando o galho com o Skype, tataraneto daquele programinha que fez a
família inteira ficar grudada no micro numa noite qualquer de 1997. Naquela experiência eletrizante,
eu e meu interlocutor não passávamos de nicknames, mas o papo rolou legal.
A coisa só perdeu a graça quando fiz a pergunta que deveria ter feito logo de início, antes de passar
mais de uma hora conversando em inglês:
– Where are you from?
– São José dos Campos – respondeu ele.
* * * * *
Upgrade
Finalmente vou fazer um upgrade de meu micro. Bem, não é realmente um upgrade para algo mais
moderno, mas para o que já foi moderno. Como sou pai de um profissional de TI, minhas
atualizações geralmente ocorrem quando meu filho também faz upgrade. Acabo comprando o
equipamento que ele adquiriu meia hora atrás.
Profissionais de TI como meu filho adoram comprar o que alguém ainda vai pensar em fabricar. São
pessoas à frente de sua época, e eu faço negócio mesmo assim porque não me importo de estar um
pouquinho atrás. Afinal de contas, minha atividade não exige tanta potência de hardware. Para quem
é escritor, o gargalo está na velocidade de digitação, não na velocidade da máquina.
Além disso, não é de hoje que utilizo equipamentos abandonados, aposentados ou reciclados. Meu
primeiro micro foi um TK-85 que nem era meu. Peguei emprestado de meu sobrinho para debutar
nas novas tecnologias. Tudo bem que naquela época o TK-85 já era peça de museu, mas eu precisava
começar de algum lugar. Comecei por ali.
As revistas de informática, também velhas e emprestadas, traziam capas com batalhas espaciais
cinematográficas. Mas, após passar horas digitando aquele monte de linhas de código para o jogo
prometido na capa, tudo o que eu via na tela era um asterisco perseguindo um acento circunflexo
com tiros de pontos de exclamação. Enxergar naquilo uma cena de Guerra nas Estrelas, só mesmo
com um monitor de alta imaginação. Por não ter como salvar, o jogo ia literalmente para o espaço
quando o micro era desligado.
Devolvi o TK-85 e peguei emprestado um TK-2000 com gravador de fita cassete. Fiquei extasiado
com aquela impressionante tecnologia de gravar dados em fitas. Meu êxtase durou pouco tempo.
Tem gente que ouve zumbido nos ouvidos, mas eu até hoje ouço aquele “té-ré-té-té” que tocava no
gravador na hora de carregar o programinha. Isso quando não aparecia uma pavorosa mensagem de
“Erro de I/O”. O que significava I/O? Sei lá, devia ser algo como “Incompetência do Operador”.
De qualquer forma era emocionante ver a família inteira reunida em torno do gravador torcendo.
Quando o computador conseguia finalmente ler o programa, era uma explosão de gritos e aplausos.
Já saíamos jogando em clima de gol, depois de esperar pelo menos dois tempos de 45 minutos com
direito a um intervalo para limpeza do cabeçote do gravador com um cotonete. Devolvi o TK-2000
quando chegou a conta dos cotonetes.
Cansado daquilo tudo, comprei um computador MSX usado que tinha até disk drive. Para dar uma
aparência profissional ao conjunto, improvisei um monitor de fósforo verde com uma velha TV preto
e branco e um papel celofane verde colado sobre a tela. Para ficar perfeito, molhei o vidro com água
e sabão na hora de esticar o papel. Gostei tanto da coisa que não parei mais. Sobre minha mesa
desfilaram equipamentos que hoje dariam para encher um museu – Apple II, XT, 386, 486, 586,
Pentium e nem sei mais o quê.
Depois de tantas madrugadas passadas em claro tentando configurar algum penduricalho no micro,
acabei fã de quem inventou o plug-and-play. Se você já tentou instalar um scanner de mão preto e
branco sabe o que eu quero dizer. Para ter sucesso era preciso desmontar o micro, encaixar uma
placa enorme, configurar mil jumpers (onde será que caiu aquela pecinha?), e ainda quebrar a cabeça
com os conflitos de IRQ. O que significa IRQ? Você acreditaria se eu disser que são as iniciais de
“Incompetência Real de um Quadrúpede”?
Aos trancos e barrancos fui aprendendo que a tecnologia é uma grande aliada de quem trabalha e
quer manter sua carreira em permanente upgrade. Hoje utilizo tudo o que posso para trabalhar de
uma forma que seria impossível no passado. Quando viajo, levo comigo um pequeno arsenal que,
junto com a Internet, transforma qualquer quarto de hotel em um escritório funcional.
Mas não basta ter tecnologia, é preciso saber usá-la corretamente para não se envolver em incidentes
comprometedores, como o que aconteceu com um palestrante em um evento empresarial. A empresa
que me contratou contou da situação constrangedora que ele criou. Com a maior pose de homem
sério, o palestrante subiu ao palco munido apenas de seu pendrive, onde devia estar sua apresentação
em Power-Point. Sim, ela estava lá, mas ele não levou em conta três coisas extremamente
importantes.
Primeiro, que não se deveria guardar tantos arquivos em seu pendrive, pois demorou um tempão indo
de um lado para outro tentando encontrar sua apresentação. Segundo, que jamais deveria ficar de
costas para o telão com o projetor ligado enquanto procurava o arquivo correto isso. Terceiro, que o
gerenciador de arquivos nunca deveria estar em modo “Miniaturas”, pois quando projetadas num
telão, as miniaturas ficam realmente grandes. Quarto, que deveria ter um pendrive para seus arquivos
privados e outro só para suas palestras públicas.
Foi por ignorar tudo isso, e principalmente por não perceber que o técnico já havia jogado para o
telão a imagem do computador, que a plateia teve a oportunidade de conhecer a coleção de fotos
eróticas que aquele distinto palestrante guardava em seu pendrive.
* * * * *
Para preservar a imagem
Pergunte a uma mulher sua idade e ela irá odiá-lo. Não importa a idade. Se for jovem demais, a
pergunta vai soar como se ela não tivesse idade suficiente para atravessar a rua sozinha ou ficar
acordada depois das dez. Se for, digamos, mais madura, vai ser obrigada a mentir. Sim, mulheres
mentem a idade para preservar a imagem.
E não é só a idade. Li em algum lugar que um grande problema enfrentado pelos sites de e-
commerce de roupas femininas é o volume de trocas por tamanhos maiores. Não que a demora na
entrega faça a cliente engordar, mas a razão é que muitas mulheres mentem na hora de digitar suas
medidas. Estão preocupadas com sua imagem e com o que o site de e-commerce irá pensar.
Já para os homens, a idade parece não afetar a imagem. Não sei se a explicação que ouvi de uma
mulher é correta, mas ela afirmava que os homens não perdem o charme ainda que revelem sua idade
real. Ou será que ela disse “ainda que revelem sua idade em reais?”. Já não tenho certeza Mas
pode ser, já que, para o homem, preservar a imagem é preservar sua força e virilidade, que
eventualmente podem ser substituídas por poder e sucesso financeiro quando o cabelo se vai e a
barriga só vem.
De qualquer modo, ninguém pode negar que as mulheres são mais preocupadas que os homens com
o envelhecimento e a aparência. A moda parece cobrar isso delas a cada tendência que desfila nas
passarelas em cabides cada vez mais precoces e esquálidos. Uma hora é a saia que sobe, e toca as
mulheres cuidarem das pernas. Outra hora é o decote que desce, e elas passam a ser avaliadas em
mililitros. Aí vem a moda da barriga de fora, e então não é o volume que conta, mas a falta dele.
A conversa feminina também é diferente da masculina quando o assunto é aparência. É
perfeitamente natural você encontrar uma mulher elogiando a roupa de outra, perguntando onde
comprou aquela bolsa, ou até acariciando o tecido do vestido da amiga para sentir a maciez.
Ninguém se espantará se ela der uma mexidinha no cabelo da outra para testar o volume ou uma
cheiradinha em seu pescoço para conferir o perfume. Se você for homem, tente fazer isso com um
amigo para ver o que acontece.
Quando caminham pela calçada homens e mulheres também têm comportamentos diferentes.
Ambos olham para os carros, mas não pela mesma razão. Os homens param quando veem um
modelo novo, importado ou bem equipado. Já as mulheres olham enquanto caminham e não ligam
para modelos ou acessórios. Olham apenas para os vidros laterais. A calçada é sua passarela e os
vidros dos carros estacionados formam uma sucessão de espelhos que podem até fazer emagrecer,
dependendo do ângulo e da inclinação.
Nos banheiros públicos o comportamento também difere radicalmente. Enquanto as mulheres não
têm qualquer dificuldade para fazer amizades, conversar e até trocar confidências, homens adoram
encontrar um banheiro vazio e silencioso. Para não deixar dúvidas quanto à sua imagem, eles evitam
qualquer conversa, contato visual ou atitude que chame a atenção. Querem entrar incógnitos,
permanecer despercebidos e saírem anônimos.
Foi por isso que me senti a pessoa mais feliz do mundo quando consegui dar uma escapada da mesa
do restaurante e encontrei o banheiro vazio, só para mim. Comigo à mesa estavam os organizadores
do evento no qual eu faria uma palestra após o almoço, além de autoridades, políticos e empresários
da cidade. No banheiro eu estava só, porém cercado de tecnologia. Percebi isso assim que a luz se
acendeu automaticamente quando entrei, seguida do ruído do exaustor. A torneira da pia também
abria sozinha com a aproximação da mão, e a toalha de papel descia do mesmo jeito. Até a descarga
da privada era acionada assim.
Sentado ali, no silêncio daquele banheiro, me esqueci do tempo. E do timer que controlava a
lâmpada no teto, que se apagou segundos depois de eu me sentar na privada. Imerso na escuridão do
banheiro sem janelas, abri a portinhola e caminhei até o ponto que eu achava ser o centro do
banheiro, meio agachado, e segurando as calças na altura dos joelhos com uma mão. Com a outra
passei a acenar para o sensor de movimento que eu calculava estar no teto, bem sobre a porta de
entrada. Quando a luz acendeu, me dei conta da besteira que estava fazendo. Afinal, tinha uma
imagem a zelar.
Voltei correndo, de ré, para a privada, fechei a portinhola e, quando a luz apagou continuei no escuro
mesmo. Não pretendia colocar em risco minha imagem. Afinal, o que alguém que entrasse iria
pensar de um palestrante agachado no centro do banheiro, com as calças nos joelhos e dando
tchauzinho para o teto?
* * * * *
Maravilha tecnológica
O voo é tranquilo e logo pousaremos em Chapecó. Tento imaginar se lá fora eu congelaria antes de
inchar. É que poucos milímetros de alumínio me separaram de uma temperatura de 50 graus
negativos, e a falta de pressão a onze mil metros de altura me faria inchar como um balão. Olho para
minha barriga e chego a duvidar que seja possível ficar maior. Só sobrevivo naquele ambiente hostil,
voando a 800 quilômetros por hora, por causa da tecnologia.
Quando meus pais se casaram, viajaram de lua-de-mel para o Rio em um Douglas DC3 com 23
passageiros. O Boeing no qual viajo leva seis vezes mais gente, pesa cinco vezes mais e voa três
vezes mais rápido. Uma maravilha tecnológica.
Lá na cabine o piloto tem um joystick no lugar do manche. Espero que ele se lembre de que está em
um avião real e ninguém ali está querendo passar de fase. De qualquer modo posso descansar, pois a
tecnologia nos deu também o piloto automático, de precisão absoluta. Aliás, em um voo que fiz de
Roma a Londres, o percurso inteiro foi feito pelo piloto automático. Como eu sei? O piloto italiano
ficou conversando com os passageiros pelo interfone a viagem inteira. Você acha que um italiano
falando daquele jeito teria mãos para pilotar?
O avião evoluiu tanto que eu poderia até trabalhar durante a viagem. Isto se conseguisse abrir meu
notebook no espaço que a companhia deixou entre as poltronas. Às vezes penso que a redução das
refeições de bordo tenha algo a ver com esse espaço. Ficou tão apertado, que na mesinha só cabe um
biscoito cream-cracker. Em pé.
Observo tudo. O botão para chamar a comissária, o furinho da saída do ar condicionado, a luz de
leitura, o fecho da mesinha, e até decorei a propaganda no paninho do encosto para a cabeça da
poltrona da frente. Que arrependimento! Eu devia ter comprado aquela revista.
Chegamos a Chapecó e as comissárias passam a dar os avisos de apertar cintos, desligar aparelhos
eletrônicos e coisa e tal. Olho pela janelinha e só vejo nuvens. Que coisa incrível a tecnologia! O
piloto sabe que Chapecó está logo ali e vai acertar a pista com uma precisão milimétrica.
Invadimos a nuvem entrando em um mundo branco e cego de neblina, enquanto acompanho a
sequência de sons que já decorei depois de tantos voos. Ruído de flaps, o trem de pouso descendo, a
turbina acelerando e reduzindo, como se calculasse a distância exata para alcançar a pista. Agora só
falta sentir o toque das rodas no cimento.
Mas o piloto arremete no último instante. Por uma brecha na neblina vejo que onde deveria existir
uma pista só há copas de árvores. Quase pousamos antes da pista. O piloto avisa que precisou
arremeter por causa da pouca visibilidade. Tento imaginar a cena na cabine: uma comissária
abanando o piloto e o copiloto enquanto outra traz um copo de água com açúcar para cada um.
Recomeçam os avisos de apertar cintos e lá vamos nós para uma segunda tentativa. Pela brecha de
nuvens consigo ver o suficiente para perceber que aquilo é o fim da pista, não o começo. Nova
arremetida. Se eu não soubesse que o aeroporto de Chapecó se encontra firmemente ancorado no
topo de uma montanha, poderia jurar que a pista está se movimentando, tentando nos evitar.
Ofegante, o piloto avisa que sobrevoaremos Chapecó até a visibilidade melhorar, caso contrário
pousaremos em Florianópolis. Ele diz que temos combustível suficiente para quarenta minutos
rodando ali e para a viagem até Florianópolis. Como sei que no caminho não há postos com
frentistas em altitude de cruzeiro, pergunto ao rapaz ao lado:
– E se o aeroporto de Florianópolis estiver fechado?
Ele não responde, está lendo um jornal. A princípio penso que o rapaz seja mal educado, mas logo
percebo que o jornal está de cabeça para baixo. Mesmo assim ele tem os olhos grudados nele e as
unhas cravadas no papel.
Quarenta minutos mais tarde o tempo melhora e lá vem a voz do comandante outra vez:
– Senhores passageiros, estamos prontos para pousar. Dentro de alguns minutos estaremos todos no
aeroporto de Chapecó.
Depois de um ou dois segundos de silêncio, ele completou:
– Assim espero.
* * * * *
O peru de dona Gertrudes
Não consigo dormir. E quem consegue? Culpa do efeito borboleta. Aquele que diz que o bater de
asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas. Se os terroristas ouvirem isso vão
querer se mudar para cá e criar borboletas.
Mas faz sentido, principalmente se você pensar que os gases liberados na atmosfera pelo seu carro
podem derreter o gelo do Ártico por causa do tal efeito estufa. E é por isso que não consigo dormir.
Estou me sentindo estufado e temo causar uma catástrofe em algum ponto do planeta.
Está tudo interligado, tudo interconectado. Vivo num imenso condomínio mundial. Se seguro o
elevador, meu vizinho de cima pode perder o emprego. Se compro tênis no camelô, estimulo o
trabalho escravo no oriente. Se compro diamantes, patrocino o genocídio na África Central. Sou mais
um responsável por todos e todos por um, num planeta com mais de seis bilhões de mosqueteiros.
Sofro ao saber que alguém na Rússia vai ficar sem hambúrguer porque alguém no Brasil se esqueceu
de vacinar a vaca. Preocupo-me quando um frango espirra no Vietnã e uma andorinha sozinha vai
fazer verão na Romênia levando o vírus.
Será que é o excesso de informação que faz isso comigo? Deve ser. Antigamente eu só sabia do que
acontecia com meus primos e minha tia. Meu mundo cresceu com a abundância de informação e eu
também. No meu caso é o efeito estufa, como já disse. Esse excesso de informação que me
bombardeia diuturnamente tem lá o seu lado bom para um cronista como eu. Dependo de fragmentos
do cotidiano para escrever e meu e-mail traz todos os dias um caminhão de matéria prima.
É claro que junto vem muito lixo, mas também recebo casos que posso reciclar, como o de dona
Gertrudes – o nome eu inventei – que pode ser real, lenda ou trote, não sei. O que sei é que, se
existir, ela é tão ou mais preocupada do que eu. Por isso decidi escrever minha versão reciclada da
história de autor desconhecido que circula na Internet, para dar a ela um sentido mais educacional.
Politicamente correta, socialmente correta, ecologicamente correta, seja-lá-o-que-for correta, assim é
dona Gertrudes. Só para você ter uma ideia, em sua cozinha há quatro cestinhos de lixo para
materiais recicláveis, um de cada cor: Vermelho para plásticos, amarelo para metais, azul para papel
e verde para vidro.
E na garagem tem mais: preto para madeira, laranja para resíduos perigosos, branco para materiais
hospitalares, marrom para orgânicos e cinza para não recicláveis. Você acredita que a mulher tem até
um cesto de lixo roxo? É para as velhas radiografias, que ela acha que são radioativas.
Quando não está caminhando ou usando sua bicicleta ou o transporte público, seu carro queima
álcool, cinco vezes menos poluente que a gasolina. Sua impressora até aprendeu a ler, de tanto ela
imprimir do outro lado, e quando vai ao supermercado, leva sua própria sacola para reduzir o
consumo de sacos plásticos. A menina do caixa, boba, acha graça.
Refrigerante em garrafa PET? Nem pensar. Só suco de fruta. As lâmpadas da casa ela já trocou pelas
econômicas, só toma banho frio e rapidinho, e ai do filho que deixar algum eletrodoméstico ligado
na tomada com aquela luzinha em estado de espera. Será que preciso dizer que ela escova os dentes
com a torneira da pia fechada e usa a água suja da máquina de lavar roupa para lavar o quintal?
Carne de vaca não come mais, por causa dos 25% do efeito estufa causados pelo escapamento do
animal. Sua dieta de alimentos orgânicos e integrais só abre a porteira para peixes e aves. E quando a
mulher viaja para o campo, leva um saco de sementes de árvores e arbustos para espalhar. Mais
verde do que dona Gertrudes, só o seu Garcez, o marido, que sofre um pouco do fígado. Até parou de
fumar para ver se resolve.
Toda essa preocupação deu aos filhos a ideia de aprontarem com o peru da ceia de Ano Novo. Justo
com o peru, que Dona Gertrudes criou só com alimentação natural, massageou usando técnicas de
Do-In e tentou, sem sucesso, fazer a ave aprender Yoga. Até homeopatia ela usou quando o peru
andou esquisito.
Dizem – mas não acreditei – que antes da execução ela usou acupuntura para anestesiar o peru e
amaciar a carne. Em minha opinião o que ela usou mesmo foi a velha cachaça, como se fazia
antigamente, despejada em um funil goela abaixo. Depois, temperou naturalmente com sal não
refinado, vinagre de maçã e ervas orgânicas, e colocou a ave no forno.
Foi só virar as costas e os filhos tiraram o peru do forno, esvaziaram a ave de seu recheio e enfiaram
no lugar um franguinho, o menor que encontraram no supermercado. Tapado o orifício com farofa
para disfarçar, devolveram o peru ao forno.
À noite, cercada pela família, a orgulhosa dona Gertrudes meteu a faca na ave e foi destrinchando,
enquanto se gabava de suas preocupações ecológicas e sociais no preparo. Ao descobrir o franguinho
assado no interior da ave, gritou de comoção e horror antes de desmaiar:
– Meu Deus! Assei uma perua grávida!
* * * * *
Pratos em extinção
Abro o jornal e a manchete me atinge bem no meio do estômago:
“POPULARIZAÇÃO DO SUSHI
AMEAÇA O ATUM DE EXTINÇÃO”.
Não que eu seja fã de sushi, mas adoro atum e por isso fiquei preocupado. Se o sushi, que leva um
nadinha de atum, é o vilão da extinção, o que pensar de mim, um inveterado predador da espécie?
Você não imagina o quanto gosto de atum, especialmente quando vem naquela latinha moderna, que
nem precisa de abridor. Basta puxar a argolinha e o atum salta no prato, suplicando por um banho de
azeite, um pãozinho italiano e uma cerveja gelada. Ele é versátil. Vai com salada, vai com
macarronada, vai de patê, vai até só, ao natural e sem nada.
Hoje me arrependo de ter comido tanto atum. Sinto-me culpado por ter colocado a espécie em risco.
Quem me via no supermercado, enchendo o carrinho de latinhas, pensava que eu era um funcionário
tirando a mercadoria vencida da gôndola. De agora em diante, todas as vezes que puxar a argolinha
da tampa, irei me sentir como se tivesse acabado de acionar uma granada de pesca predatória.
Mas, se sou culpado da extinção do atum, nada tenho a ver com a extinção da baleia. O caso dela me
intriga. Você já comeu baleia ou conhece alguém que tenha comido? Mesmo assim ela corre risco de
extinção. Nunca vi uma latinha de baleia no supermercado. Se perguntasse ao gerente, aposto como
ele iria dizer que o supermercado não trabalha com baleias porque ninguém compra e a mercadoria
fica encalhada. Deve ser verdade, já ouvi falar de baleia encalhada.
O que me intriga nessa questão de extinção são os critérios da natureza. O que, exatamente, torna
uma espécie mais extinguível que outra? Enquanto espécies como atuns e baleias desaparecem,
outras, que gostaríamos de ver ao lado dos dinossauros, continuam aí, fortes e saudáveis, driblando a
extinção. Estou falando daquelas que têm a foto nas latinhas de aerossol: moscas, formigas,
pernilongos e baratas.
Quantas baratas você já matou até hoje? Mais do que os atuns que comeu, com certeza. Por acaso
elas correm algum risco de extinção? Nenhum. Você pode matar quantas quiser e elas continuam
fortes e saudáveis. Corte a cabeça de uma barata e ela só morrerá cinco dias mais tarde, de
desidratação. O cérebro da bichinha tem backup nas costas. Será que a solução seria enlatá-las?
Eu já estava preocupado com a possibilidade de não poder comer atum quando tomei outro susto.
Camarão! Isso mesmo, meu segundo prato predileto. Será que já está extinto? Deve estar. Pelo
menos foi a impressão que tive, quando pedi um “Peixe na Telha com Camarão” que vi no cardápio
de um restaurante de beira de estrada. Quando terminei protestei, indignado, para o garçom:
– Que péssimo, só encontrei um camarão!
Reclamei, porém inseguro, já que no cardápio “camarão” estava mesmo no singular.
Sem tirar os olhos dos pratos que recolhia da mesa para a bandeja, o garçom respondeu com uma
insensibilidade preocupante, como se a extinção do crustáceo fosse algo perfeitamente normal:
– Achou um? Sorte sua. Tem cliente que não acha nenhum.
* * * * *
Um avatar no meu quintal
Juntando os comentários na Web sobre o ativismo ecológico de James Cameron na Amazônia, a
mensagem de quem reclama é uma só: O cara não tem nada que se intrometer no meio-ambiente
daqui. Será?
A verdade é que as questões ambientais não têm fronteiras. Como na Pandora do filme Avatar,
vivemos num mesmo planeta onde tudo afeta a todos. Uma erupção no vulcão Eyjafjallajökull na
longínqua Islândia vai parar no seu pulmão, quer você consiga pronunciar o nome do vulcão ou não.
Sem tirar de James Cameron o direito de defender índios e flechar hidrelétricas, eu só diria a ele:
"Menos, James, menos ".
Por quê? Porque ele está com o rabo preso em uma sociedade de consumo que polui para sobreviver.
É admirável sua disposição para defender nativos de pele vermelha ou azul, mas também admiro
quem defende as hidrelétricas como opção de energia limpa e barata.
É claro que colocar uma rolha no Rio Xingu gera impacto socioambiental, mas não existe opção
rápida para pessoas ávidas para assistir Avatar em 3D numa nova TV, como eu e você. Pouco a
pouco vamos aprendendo a ordenhar o vento e o sol, mas ainda é debalde para a atual demanda de
energia. Por um bom tempo continuaremos dependendo da hidrelétrica, do átomo e dos combustíveis
fósseis para quase tudo, inclusive para fazer filmes.
Sabia que Hollywood é a segunda indústria mais poluente de sua região? Pois é, e o governador da
Califórnia está empenhado em reverter isso. É o mínimo que pode fazer quem já foi o exterminador
do futuro. Somos tão dependentes da indústria petroquímica, que até para protestar contra o
combustível fóssil dependemos do dito sujo. Os motores dos navios do Greenpeace não são movidos
a boas intenções, e aqueles caras não fazem rapel no costado dos superpetroleiros com cordas de
sisal biodegradáveis, nem seus botes de ataque são pedalinhos.
O calor do protesto pode aquecer a opinião pública global, mas as soluções costumam vir de quem
fala menos e faz mais. Mesmo assim, quem fala deve continuar falando, consciente de que estamos
todos de rabo preso no atual modelo de desenvolvimento. Inclusive você, que usa a Internet. De
acordo com o Daily Telegraph, a cada duas buscas no Google você gera tanto CO2 quanto para
ferver seu chá.
Ativistas radicais sugerem deixar o mato crescer, esquecer as hidrelétricas e não mexer com o índio. A
questão é que o índio não é tonto. Hoje ele também quer transporte, luz, Internet e celular. Querer viver
índio com cabeça de consumo é repetir a tragédia asteca. Pode funcionar para uma tribo de meia dúzia,
mas não funciona para uma tribo de meia dúzia de bilhão.
A visão romântica de meus anos de ativista ecológico na faculdade, com cada um morando numa
casinha branca no mato e assando seu próprio pão, é pura ilusão. Terminei a faculdade, fui morar no
mato e fiz até uma canção para embalar meu sonho. Mas não é preciso ser muito inteligente para
entender que mil pães assados num único forno gastam menos energia do que mil fornos assando
cada um o seu pão.
É por isso que cidades empilhadas e apinhadas ainda são mais eficientes do que condomínios
horizontais, com casas esparsamente polvilhadas em extensos gramados. Apartamentos gastam
menos energia, encanamento, fiação, superfície impermeabilizada, transporte etc. Quanto mais gente
você empilhar, menos energia vai gastar.
Mas não se torture se morar numa mansão. James Cameron mora em uma construída e mantida à
custa de muito combustível fóssil em um oásis artificial irrigado por bombas no deserto. Como eu já
disse, todos nós temos o rabo preso, mas se for para o bem do planeta, até vale o James adotar o
Avatar mais adequado ao seu papel de salvador da Pandora amazônica.
Até eu tenho o rabo preso nos atuais meios de transporte altamente poluentes, pois para fazer
palestras de meio-ambiente e outros assuntos, viajo de carro ou avião. Não posso viajar nos cavalos
de seis pernas de Pandora, ou voando em seus dragões alados. E ainda que pudesse, não seria
diferente dos habitantes de lá. Afinal, no filme eles também só conseguem viajar quando estão com o
rabo preso.
* * * * *
A hora do Abreu
O tropel de trezentos cavalos ecoou pelo vale quando o pedal do acelerador sentiu o toque da espora
do dono. O motor do SUV respondeu rápido e os enormes pneus obedeceram à tração nas quatro
rodas, fazendo o veículo escoicear em meio a uma saraivada de pedras e barro. Pelo retrovisor já não
era possível enxergar a trilha, oculta por uma cortina de fumaça.
Abreu precisava vencer logo aquele trecho antes de chegar ao asfalto. Tinha um compromisso
consigo mesmo e com a sociedade. Não podia faltar. Como sempre fazia, abriu o vidro e atirou para
o mato as garrafas PET de água mineral, agora vazias, e o saco plástico com os restos de frutas e
sanduíches naturais. Ele se preocupava com a saúde, mas só aos sábados, quando queria estar bem
disposto para vencer as trilhas. No domingo saía da trilha e do sério, e caprichava no churrasco.
No caminho parou no açougue do amigo para abastecer de carne o seu freezer. Tinha ligado para
reservar a melhor picanha, diretamente de uma fazenda no Amazonas. Enquanto colocava os pacotes
em tríplices sacolas plásticas para evitar que se rasgassem, Abreu calculou se as cervejas que tinha
em casa no congelador ao lado do freezer seriam suficientes. Achou que sim. Só precisava mesmo da
carne e de dois sacos de carvão.
Em casa, os pneus deixaram um rastro de barro na calçada, na entrada e no piso da garagem, mas a
faxineira cuidaria de passar um esguicho em tudo na segunda-feira. Antes disso Abreu já teria levado
o carro para lavar. O pessoal do posto não reclamava de lavar na segunda o barro seco do sábado,
pois Abreu sempre deixava uma gorjeta para compensar o dobro de esforço, água e xampu que seu
carro exigia.
Antes de sair da garagem olhou de relance para o jet-ski ao lado da moto de 800 cilindradas. Logo
ele levaria seu novo brinquedo náutico para a casa de madeira que tinha na marina, onde também
ficava sua lancha de 28 pés movida por dois enormes motores diesel. Abreu olhou para o relógio e
viu que ainda dava tempo de tomar uma sauna antes do banho. Foi só quando saiu do banho quente
que percebeu que a casa estava fria. Com a mão enrugada regulou o ar condicionado central que
mantinha sempre ligado. Caminhou para a sala e olhou outra vez para o relógio. Tinha chegado a
hora.
Abreu acionou o interruptor e as trinta e oito lâmpadas incandescentes parcialmente embutidas no
teto se apagaram. Em seguida desligou um a um cada abajur dos oito cantos de sua enorme sala. Por
uma hora Abreu ficaria em estado de espera, igual aos doze leds coloridos dos aparelhos eletrônicos
na estante.
Sentindo uma paz interior como há muito não sentia, Abreu foi até a janela e fechou as cortinas para
evitar que as luzes da casa do vizinho estragassem a aura preservacionista que preenchia cada
recôndito de sua alma. Se o vizinho não queria participar da "Hora do Planeta", com todos apagando
as luzes por sessenta minutos, o problema era dele. Cansado e com sono, Abreu desabou no sofá e
sonhou que era Al Gore.
* * * * *
As 110 lâmpadas
Não, não eram 102 dálmatas, muito embora aquele teto lembrasse a pele do cão. Eram cento e dez
pontos negros no teto branco segurando cento e dez lâmpadas econômicas que não faziam economia
alguma. Eu estava na pequena agência dos correios da pequena estância hidromineral onde passava
minhas férias quando pequeno. Fiz uma parada rápida ali a caminho de um cliente na cidade
seguinte, para matar a saudade e postar um Sedex.
Aquele exagero de pontos de luz em um ambiente pouco maior que minha sala chamou minha
atenção, provavelmente por ser arquiteto de formação e curioso por vocação. O curso de arquitetura
me ensinou a observar os detalhes e a pensar em 3D, coisas que me ajudam até hoje. Disto depende o
pensamento estratégico em qualquer atividade que eu exerça e ainda posso ouvir meu professor
dizendo:
"Prédios não têm fachada, não têm frente nem fundos, todos os lados precisam ser pensados".
A sabedoria do professor vale para qualquer negócio. A arquitetura ensinou-me também a tomar o
ser humano como ponto de partida e destino de todo projeto. Só faltou uma coisa no curso de
arquitetura, algo que todos os cursos ficam devendo a seus alunos: ensinar a vender.
Por não ter aprendido marketing, saí da faculdade com uma visão hermética, purista e elitista: só eu
seria capaz de saber o que era melhor para meu cliente e pouco me importava se ele entendia ou não
o valor e a razão da minha profissão. Caí no mercado com uma visão equivocada do que é ser
arquiteto.
Mas se eu, que estava dentro da profissão, tinha uma visão equivocada, o que esperar de quem está
fora? Pergunte a qualquer pessoa o que um arquiteto faz e, deixando de fora os que ficarão mudos,
você terá um rosário de definições, algumas nem um pouco politicamente corretas. A maioria vai
concluir que arquiteto é um luxo desnecessário.
“Arquiteto? Pra quê? Basta levar o esboço feito pela patroa em papel de pão e aquele despachante
da esquina passa a limpo e ainda obtém a aprovação da planta. Nada que uma caixa de cerveja não
resolva”.
Mas, na real, o que é arquitetura e o que faz o arquiteto? Fiz uma busca no Google e fiquei
petrificado como a definição de Goethe: "Arquitetura é música petrificada". Le Corbusier definiu a
arquitetura como "o magistral, magnífico e correto jogo de volumes trazidos à luz". Lá atrás, há dois
mil anos, Marco Vitrúvio Polião, arquiteto romano, escreveu:
"A arquitetura é uma ciência, surgindo de muitas outras, e adornada com muitos e variados
ensinamentos: pela ajuda dos quais um julgamento é formado daqueles trabalhos que são o
resultado das outras artes."
Hein? Bem, com definições assim o que você esperava que o leigo pensasse do arquiteto? O que
pouca gente percebe é que há milhares de anos o arquiteto tem deixado sua marca na história
humana. Ora, quem você acha que projetava as cidades, edifícios e ambientes dos épicos que você vê
no cinema? Exceto pela parte em que o arquiteto era enterrado vivo com o faraó, a profissão era das
melhores e mais respeitadas da antiguidade.
E hoje? Falta ao arquiteto saber vender seu peixe; conseguir traduzir para o cliente o valor intrínseco
da profissão, descortinar o benefício, o que o cliente vai ganhar com isso. Caso contrário será
impossível evitar a ideia equivocada que muitos têm da profissão.
O homem atrás de mim na fila da agência de correios era um deles. Depois de contar as lâmpadas
para matar o tempo, comentei com ele:
– Será que aqui funcionava uma loja de lustres e aproveitaram os pontos de luz? Ou, talvez, o dono
do imóvel seja um fabricante falido de bocais? Ou quem sabe um acionista da indústria de lâmpadas
econômicas?
– Nada disso – redarguiu o homem na fila. – Isso aí só pode ser coisa de arquiteto.
* * * * *
A expansão do ser humano
Há mais de quarenta anos o homem chegava à Lua. Foi um momento de conquista e glória para a
humanidade. Finalmente tínhamos alcançado as alturas. Agora tudo indica que o ser humano está
empenhado em alcançar as larguras.
Percebi isto na entrevista de uma empresária do segmento de confecções de roupas íntimas. Caíam as
vendas de calcinhas tamanho "P" e aumentavam a olhos vistos as de tamanhos como "G", "GG" e até
"GGG". Provavelmente o mesmo acontece com as cuecas e suponho que a indústria acabará
adotando etiquetas com tamanhos exponenciais como "G
20
".
Apesar das políticas de controle de natalidade, a população da Terra continua sob a ameaça de uma
explosão demográfica, agora no sentido literal. Essa expansão do ser humano para as laterais já cria
problemas de espaço. As salas de embarque nos aeroportos oferecem bancos em dobro para obesos,
mas os aviões ainda insistem nas poltronas tamanho "P - Infantil". Se você for tamanho G+ vai precisar
comprar duas poltronas e pedir um extensor do cinto de segurança. Já posso ouvir a mudança que logo
farão no aviso da comissária: "Para seu maior conforto, mantenha o cinto afivelado e o apoio do
braço entre as poltronas levantado".
Em um de meus voos fiquei feliz ao descobrir que viajaria na poltrona do corredor e com uma vaga
entre mim e o passageiro da janela. Ele pareceu ler meus pensamentos, pois também olhou para a
poltrona vazia entre nós e sorriu. Mas nossa alegria durou pouco. Um eclipse na luz da cabine
revelava o embarque tardio de um casal avantajado. A dupla avançava pelo corredor deixando claro
para onde caminha com dificuldade a humanidade, se não parar de comer.
Lembrei-me com saudades dos tempos em que as coisas eram mais difíceis e você precisava
descascar as batatas se quisesse comê-las fritas. As pessoas eram menores e mais magras, ter carro
era luxo e refrigerante era bebida de festa. Hoje os adolescentes são maiores que os pais. Muito
maiores. Verdadeiros gigantes que não só crescem para o alto, mas também para os lados.
Principalmente para os lados. Dos pés, então, nem se fala. Eles compram tênis e ainda podem
escolher o acessório: remo ou vela.
Enquanto o governo não trocar o "Fome Zero" pelo "Obesidade Zero" e estampar nas embalagens de
alimentos calóricos uma galeria de horrores como a das embalagens de cigarros, a população do
planeta vai ter de combater o "Efeito Estufado" à sua maneira. E é o que estão fazendo os
funcionários de um hospital no Rio.
De iniciativa própria eles adotaram um programa nutricional para reduzir a taxa de quase 50% de
obesidade da equipe. Depois de um ano, os mil e quatrocentos funcionários tinham se livrado de três
toneladas de gordura. Três toneladas! Para você ter uma ideia, se toda essa gordura fosse extraída por
lipoaspiração daria para produzir duas toneladas de biodiesel. Também daria para fabricar centenas
de barras de sabão ou potes de margarina, para quem não se importar de passar o colega no pão. Nem
o pessoal da Rio+20 pensou nesta possibilidade.
A notícia que chega de Nova Iorque é de uma iniciativa para atacar os refrigerantes como quem ataca
o terrorismo. A demora na implementação das leis deve ser por estarem discutindo se a pena para
quem tomar Coca-Cola deve ser a mesma de quem tomar Pepsi. O sal também virou vilão e em
alguns lugares o saleiro já foi banido da mesa dos restaurantes.
Mas sal engorda? Sim, porque causa a retenção de líquidos no corpo. Então a solução, ao menos para
o excesso de sal, é evitar salgados e comer doces, certo? Errado. Outro dia comparei a quantidade de
sódio que havia numa porção de batatas fritas servidas no avião com o sódio da mesma porção de
biscoitos de chocolate recheados que aceitei da aeromoça em um momento de fraqueza. O biscoito
doce tinha mais sódio que a batata salgada.
Meus pensamentos foram interrompidos quando o casal wide-body parou no corredor do avião para
conferir seus lugares: a mulher iria para a poltroninha do meio, ao meu lado, e o homem ficaria do
outro lado do corredor. Quando percebi, levantei-me de um salto.
– Viajam juntos? Não é justo que fiquem separados. O senhor pode ficar com meu lugar ao lado de
sua senhora e eu fico com o seu, do outro lado do corredor. Faço questão! – insisti.
Os dois ficaram encantados. Pela pequena fresta que sobrou entre eles e o encosto da poltrona pude
ver o outro passageiro, com a bochecha grudada na janelinha, me fuzilando com o olhar.
* * * * *
Ai, que fome!
Deixe-me adivinhar: em sua lista de promessas para o novo ano está perder peso, certo? Na minha
também. Agora, cada vez que me sento para uma refeição, quase posso ouvir meu prato dizer: "Tudo
o que você comer poderá ser usado contra você". Igual aos filmes policiais.
Há algumas décadas eu até que consegui perder uns quilinhos. Apertei o cinto de 93 para 87 quilos
reduzindo a atividade do maxilar e aumentando a das pernas. Numa nova e corajosa investida eu
consegui chegar nos 85 quilos e fiz novos furos no cinto. É fácil perder alguns quilos. Nos últimos
anos perdi vários deles. O problema é que depois achei todos e mais alguns.
Emagreço quando dou palestras, por manter a boca ocupada. Como não fico 24 horas palestrando,
decidi criar minha própria dieta: saladas, frutas e fomes. Isso mesmo, no plural, porque a fome é
muita. Eu já tinha me esquecido da sensação de fome. Qual foi a última vez que você teve uma fome
daquelas de quando era criança?
No tempo em que maiô ainda era de lã, daqueles que pareciam coador de café ao sair da água, eu
treinava natação. No fim do treino eu devorava um pão com mortadela na cantina do clube. Quando
dava sorte vinham dois palitos, um em cada metade, que eu segurava com os dedos enrugados,
lambia e mastigava para não desperdiçar nenhum gostinho, tamanha era a fome. Outro dia vi uma
foto da época e lembrei-me dos palitos. Eu era assim, fininho.
Não tinha esse negócio de snack de batata frita. Naquele tempo, quem quisesse comer batata frita
precisava pedir à mãe na véspera. Ela ia comprar a batata, descascar, esquentar o óleo, fritar, secar
e mandar você plantar batata se quisesse comer antes do almoço. Batata frita nunca era comida
sozinha – sempre vinha na garupa do bife montado pelo ovo.
Hoje não. Basta rasgar a embalagem e a batata está ali, dourada, crocante, deliciosa! E cheia de
gordura, aromatizante, corante, sal e glutamato monossódico, para o seu corpo se transformar numa
verdadeira represa de retenção de líquidos. Se continuar assim, as balanças de nova geração virão
graduadas em arroba.
Até as revistas estão se adaptando aos tempos rotundos. Outro dia vi uma revista dessas de gente
chique que joga golfe. Meu olho de arquiteto percebeu logo que as fotos das socialites e emergentes
tinham sido esticadas na vertical para as pessoas parecerem mais magras. O que o manipulador do
Photoshop não percebeu foi que as bolinhas de golfe ficaram ovais.
As empresas começam a abrir os olhos para o problema da obesidade e você já encontra cardápios
light nos refeitórios. O problema é que eles ficam ao lado daquele suco de maracujá que é um
melado, de tanto açúcar. A campanha pela saúde no trabalho só tende a crescer, porque a banha
precisa diminuir. Gordura demais amolece o trabalhador, derruba a produtividade e aumenta a
probabilidade do funcionário empurrar tudo com a barriga. Literalmente.
Qualidade na vida e no trabalho é um tema para o qual tenho sido convidado para falar com uma
frequência cada vez maior. Daí minha urgência em perder dez quilos e ganhar dez anos. Dou-me por
feliz por não fumar, não ter fígado flex e nem ser viciado em doces. Portanto é só diminuir a
quantidade do que entra pela boca e aumentar o que sai pelos poros. Para isso faço caminhada – de
vez muito em quando – ouvindo meu iPobre, uma versão barata do iPod.
Assim como já tem empresa aérea cobrando mais para quem pesa o dobro, daqui a pouco vai ser
preciso incluir no currículo peso e medidas de busto e quadris. A falta de forma – ou o excesso dela –
aumenta o custo do trabalhador, mais vulnerável às doenças causadas pela obesidade. Pode soar
discriminatório, mas o critério vai seguir o exemplo do que já é feito com o fumo. Os governos do
mundo perceberam que os ganhos com os impostos do tabaco não compensam as perdas com
previdência de uma população fumante.
A campanha contra o fumo nas empresas vai ganhando características aterradoras. Visitei uma que
começou criando uma sala para fumantes, para depois criar quiosques e distribuí-los o mais longe
possível de cada prédio. O passo seguinte foi eliminar as coberturas dos quiosques e fazer uma
parceria com a chuva. Agora a empresa está reduzindo o número dessas áreas de fumantes para
obrigá-los a caminhar dezenas de metros até a área mais próxima. Como a empresa é grande e
espalhada, se correr, dá tempo de o trabalhador acender, tragar uma vez, e voltar antes de terminar o
horário de almoço.
De olho nesse novo padrão de consumo, em breve os fabricantes devem lançar cigarros menores, ou
mesmo picotados, para você fumar só um pedacinho. E a indústria da reciclagem vai querer o seu
quinhão, lançando maços de bitucas ou baganas remanufaturadas.
* * * * *
Santa Maria!
– Santa Maria! – foi o que eu e Cristóvão Colombo exclamamos quando pisamos no convés daquela
caravela. O barco que Fernando e Isabel, reis da Espanha, deram ao explorador genovês para cruzar
o Atlântico era minúsculo e nem de longe lembrava aqueles do filme “Piratas do Caribe”. Daí a
surpresa.
Antes que me julgue velho, saiba que eu e Colombo não dissemos isso na mesma época. Nem foi no
mesmo barco que estive, mas numa réplica que visitei nos Estados Unidos cinco séculos depois do
genovês. Gosto de deixar isso claro, pois após certa idade a simples menção de um fato histórico faz
as pessoas pensarem que você participou dele. Quando alguém me pergunta se vi o Titanic fico na
dúvida se está falando do filme.
Quando Colombo zarpou para a Índia na direção oposta, todo mundo achou que seu barco
despencaria no abismo que havia onde acabava a Terra plana. Para mim ele sabia que a Terra já tinha
ficado redonda, mas há quem diga que Colombo era do tipo que viajava sem parar para pedir
informações, por isso errou o caminho.
Apesar de ter ido até o Triângulo das Bermudas, não era em confecções que ele estava interessado,
mas em especiarias. Era cada vez mais difícil encontrar pimenta e outros temperos nos
supermercados da Espanha e ninguém aguentava comer paella com gosto de nada. Além disso, há
boatos de que Colombo pretendia trazer um navio de pimenta e montar uma fábrica de linguiça na
Calábria, mas isso nunca foi confirmado.
Cristóvão Colombo só é considerado o descobridor da América porque teve uma boa assessoria de
imprensa. Quando seu navio chegou os índios já moravam aqui há séculos, mas pelo jeito ninguém
prestava atenção em descobridores que vieram a pé. Tenho um palpite de que até mesmo outros
italianos tenham atravessado o Atlântico antes de Colombo, sem navio, só falando, falando
Felizmente Colombo nunca soube exatamente o que descobriu, portanto não deu seu nome ao Novo
Mundo. Foi graças a outro italiano, Américo Vespúcio, que nosso continente acabou se chamando
América e isso evitou uma enorme confusão geográfica. Se tivessem deixado Cristóvão Colombo
batizar o continente, hoje o Brasil ficaria na Colômbia.
Graças a esses, que navegaram “por mares nunca dantes navegados, passaram ainda além da
Taprobana, em perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a América é
hoje o continente que conhecemos. Se não fosse pela coragem desses homens, Camões não teria
escrito estes versos, eu não teria sido obrigado a decorá-los no ginásio e meu professor não teria me
aprovado. Mesmo assim continuo sem saber onde fica Taprobana.
Por pouco não fomos descobertos 80 anos antes pelos chineses, com navios quatro vezes maiores
que os meros 25 metros do “Santa Maria”. Eles já navegavam por aí quando os europeus ainda
tentavam descobrir com quantos paus se fazia uma canoa. O Colombo dos chineses chamava-se
Zheng He e teria aportado aqui antes dos europeus se o novo imperador não instituísse uma política
mais pé-no-chão. Sorte nossa.
Por quê? Oras, já pensou se os chineses tivessem fincado bandeira aqui antes de Cristóvão Colombo?
Nossa vida não seria a mesma. Estaríamos hoje usando roupas chinesas, sapatos chineses,
computadores chineses
* * * * *
Minha vida esportiva
Não me lembro do que possa ter despertado em mim a vontade de praticar esportes. Será que foi o
presente que alguém me deu no aniversário, um par de raquetes de pingue-pongue, com rede e
bolinha? Talvez. Como não tinha mesa, aquilo só serviu para me deixar com vontade de jogar.
Mas antes de jogar pingue-pongue virtual eu já tinha ingressado a contragosto no mundo das artes
marciais, por insistência de minha mãe. Ela achava que pagar aulas de judô para eu apanhar de
meninos maiores ajudaria na formação de meu caráter, e me inscreveu na mesma academia do
coleguinha do grupo escolar que eu odiava e mais tarde seria bandido.
Desisti do judô antes mesmo de pedir à minha mãe para costurar um zíper na blusa de meu quimono,
a qual insistia em ficar aberta. Alguém sempre me derrubava antes de eu terminar de dar o nó na
faixa branca. Mas não foi esse o motivo, e sim descobrir que os meninos de faixa mais colorida que a
minha acabavam brigando na rua no velho estilo irlandês, com socos e pontapés.
Os meninos do campinho perto de casa também tiveram grande influência em minha vida esportiva,
ou na falta dela. Até hoje sou grato por terem me convidado para jogar no time de futebol do bairro,
tão logo ganhei de meu pai uma bola de capotão, toda de couro. Prestativos e cansados de jogar com
bola de plástico ou de meia, os meninos iam até minha casa para avisar que o jogo iria começar e
sempre me escalavam para jogar no gol. Atrás do goleiro.
Como eu era do tipo que vivia mergulhado nos pensamentos, aos onze anos decidi tentar natação.
Aquilo rendeu as três únicas medalhas que ganhei honestamente. Além disso, nadar fez bem para
minha autoestima. Para quem aos dois anos de idade se afogou no lava-pés da piscina de um hotel, o
simples fato de não precisar ser ressuscitado cada vez que saía da água já era uma prova de
superação.
A quarta medalha veio em um torneio de xadrez organizado por um primo com dificuldade para
completar a grade de participantes. Como eu não sabia jogar, ele deu duas aulas com as quais aprendi
que, no xadrez, o peão vai a pé porque não confia no cavalo, que vive dando guinadas. Estava pronto
para competir. Meu primeiro adversário faltou, o segundo não veio, o terceiro ficou doente e o
quarto Bem, o quarto veio e ganhei dele.
Era um velhinho senil, íntimo da rainha, com quem conversava o jogo inteiro. Em voz alta, dizia a
ela tudo o que pretendia fazer e o que eu faria em seguida. Fui seguindo suas instruções e venci,
depois de escutar ele confidenciando à rainha como achava que eu poderia levá-lo a um xeque-mate.
Minha sorte levou-me a disputar o terceiro lugar, quando finalmente fui derrotado. Como meu primo
tinha comprado uma medalha a mais, fiquei em quarto lugar. Nem ouro, nem prata, nem bronze.
Acho que era de lata.
Mas minha falta de jeito para esportes continuava nas quadras. No colegial meu professor foi rápido
em detectar a posição em que eu seria mais útil para o time de basquete. Deve ter sido sua
sensibilidade para identificar vocações que me levaria anos mais tarde a trabalhar num banco.
Se não fosse pelo incentivo e pela insistência de meus professores eu teria ficado longe dos esportes.
Na faculdade teve até um que se recusou a aceitar o atestado médico que arranjei com uma colega
para escapar das aulas de educação física. Ele não abriu mão de minha presença na quadra e ainda
deu bronca em minha colega, filha de um conhecido ginecologista.
* * * * *
O Maverick de Hildebrando
Se você tiver a minha idade vai se lembrar dos primeiros carros a álcool. A ideia era tão nova que
nem tecnologia existia para dar a partida naquela nova era do automóvel. Aliás, naquele tempo e
com aquele álcool o problema era dar a partida.
Quem tinha vizinho com carro a álcool podia aposentar o despertador. Dava para acordar com o som
da partida, tomar banho, café, ler o jornal e ainda oferecer uma carona ao vizinho. Na época poucos
veículos saíam de fábrica com motor alcoolizado, mesmo porque para saírem de fábrica alguém
precisava dar a partida. O mais comum era encontrar carros velhos que já bebiam gasolina demais,
adaptados para beber outra coisa.
Era o caso do Maverick do Hildebrando. Depois de passar por uma adaptação das piores, ninguém
imaginava que seria possível piorar ainda mais aquele motor. Mas o Hildebrando conseguiu, depois
de viajar trezentos quilômetros na base da pinga. O motorista até que chegou bem, mas o Maverick
entrou em um coma alcoólico.
Era o início da década de 1980, quando os postos só abriam de dia e fechavam nos finais de semana
para racionar gasolina. Hildebrando precisou viajar de volta para casa e a única boa ideia que teve foi
visitar os botecos que encontrou pelo caminho. Aquela foi a gota d'água para o motor. Água que
passarinho não bebe.
Pensa que foi difícil para o Hildebrando conseguir um comprador para seu Maverick detonado? Não
foi. Apareceu um que não sabia dirigir e morava num sítio a uma descida de distância da cidade.
Bastou o Hildebrando descer até o sítio com o rapaz no banco ao lado para convencê-lo. Qualquer
um que não entendesse do assunto teria ficado maravilhado com aquele motor tão silencioso.
Mais de vinte anos se passaram e hoje até eu optei pelo álcool. Quero dizer, carro a álcool. Comprei
um com motor Flex e ainda estou intrigado. Como ele pode saber o que entrou no tanque? Se eu
vivesse em outros tempos diria que é bruxaria, mas hoje sei que é tecnologia.
Ainda bem que esta tecnologia só chegou agora, porque se chegasse na época do Maverick do
Hildebrando, quem é que ia conseguir plantar cana para abastecer a frota nacional e ainda exportar?
Hoje, tecnologia de plantio o país tem, e carro que pega e funciona também. O meu, pelo menos,
funciona como um relógio. Sem despertador.
Mas nem todo mundo está feliz. Quem cria boi, por exemplo, vê com tristeza a invasão da cana. Não
deveria. Já tem gente pesquisando aproveitar o que sobra do boi para produzir biodiesel. Bem, neste
caso da tecnologia do aproveitamento do boi devo admitir que o carro do Hildebrando já estava à
frente de sua época.
Uma vez, passando pela região do sítio do comprador do Maverick, encontrei-o parado na estrada
poeirenta com um pneu furado e sem macaco. Emprestei o meu e até ajudei a trocar o pneu,
observado por mais de meia dúzia de olhinhos da filharada do rapaz, sem contar os que estavam no
colo e barriga da mãe. Como ele já tinha aprendido a dirigir, parti sem me preocupar em saber se ele
conseguiria dar a partida ou não.
Na volta, vi por trás o Maverick indo lá na frente devagar, quase parando. Estranhei. Foi só na
ultrapassagem que vi a razão da lentidão. O Maverick, com mais de meia dúzia de narizinhos
colados no vidro, voltava para o sítio puxado por uma parelha de bois.
* * * * *
O velho sobrado
O cliente era um viúvo sexagenário pedindo uma reforma. Não de si mesmo, mas de seu velho
sobrado. O homem contratou o escritório de arquitetura no qual eu trabalhava como estagiário e deu
carta branca para ampliar o que precisasse ser ampliado, mudar o que precisasse ser mudado e
derrubar o que precisasse ser derrubado.
Na sala da casa, a primeira coisa que chamou minha atenção foi uma parede de elementos vazados
de cerâmica amarela. Horrível. Na mesma hora decidi que a marreta devia começar por ali. Era bom
encontrar um cliente pronto para virar a página e olhar para frente.
Eu mesmo sou assim. Gosto de história, mas não de viver nela. Quando alguém diz que antigamente
era tudo mais fácil, tenho vontade de perguntar se já lavou fraldas. Sim, pois trocar fraldas hoje é
refresco. Basta jogar fora a usada e pegar uma nova no pacote.
Telefonar, então, nem se fala. Antigamente as ligações interurbanas precisavam ser solicitadas à
telefonista com bastante antecedência. Quem estivesse para morrer precisava ligar uma semana antes